quinta-feira, 18 de junho de 2015

Artigo: Com Marcílio, em viagens

Foto: Elistênio Alves/Arquivo Iphanaq
Com meu amigo Marcílio, seguir com os afetos que ele nos entregou, a carregar. Doação, sem nada cobrar. O prazer na boa conversa, em um caminho aberto à amizade feita no lugar que converge nossos passos, de uma história com os outros. Passos que passam a ser nossos, e assim os tomamos para nossa caminhada.

Além da emoção, logo após, foi uma ideia que veio logo ao receber a notícia sobre sua viagem maior. Ela fica sendo a penúltima, ao tempo em que ele, Marcílio, chega a passear em nós, de maneiras que vamos descobrindo. É o que vem e fica dos grandes viajantes, quando conseguimos pensar após a emoção forte do impacto da notícia, motivo de não escrever antes. Como disse a jornalista e professora Eleuda de Carvalho, ao saber dessa viagem, “é um pedaço da nossa memória que passa ao silêncio e ao eterno”. Ela que, pelo trabalho em viagem, tomou afeto por Marcílio, compartilhando lugares com ele, pela voz, pelos cadernos. “Antônio Vicente Mendes Maciel foi uma chama viva e vivificada por seu parente afável e bom”, disse ainda Eleuda, encruzilhando as veredas dos dois, bifurcando mundos, lembrando ela dos peixes partilhados por Marcílio.

Do Marcílio da Rua da Cruz me falaram primeiro os amigos que por lá moravam, que com ele conversavam à noite, tecendo as dimensões um tanto ocultadas na cidade falante em pogresso, no seu embotar de poderes que são novos apenas como se anunciam.

Exterior e Interior – No passo solidário um tanto encoberto, Marcílio foi cativando amigos, na cidade e entre aqueles que a visitavam, como artistas, jornalistas e pesquisadores. Além da querida Eleuda, recordo-me do contato com o professor Paulo Emílio, grande pesquisador e entusiasta do Belo Monte, território que este, tornando-se amigo, reconheceu no Maciel com quem passou a conviver, trocar correspondências. Fogo de vida, como em um texto que escrevi, uma exposição não mostrada de fotos, mas que com Ele, Marcílio, logo saltou dentro de nós para habitar um interior movente de cada um.

Voz forte, bela, coração maneiro, sentidos argutos. Assim viveu e assim está Marcílio no filme “Paixão e Guerra no Sertão de Canudos”, em uma das conversas com o documentarista baiano Antônio Olavo, onde está, como em dimensão divina, com sua adorada mãe, Dona Zefa. Ou na tela de Alexandre Veras e seus alunos, como Elistênio Alves, falando com seus contemporâneos – no tempo e não todo tomado por ele – sobre o amigo Conselheiro, sempre especial para Marcílio, a partir de quem lançou uma dimensão diferenciada de família: do sangue e do mundo íntimo, mas para além deles, extravasando qualquer enquadramento de câmera nesse sentido.

Por essas ruas, no Riacho da Palha, rompendo a separação de tempos com sua voz, seu narrar. Também confuso e confundido no caótico da cidade, modernidade de onde ele falava sem se render a lamentos, mas reconhecendo esse lugar para interroga-lo a sua maneira, trazendo algo a friccioná-la, como se a espremesse e, mesmo sofrendo, nos sacudisse para perceber algo mais. No Riacho da Palha de Helena Maciel, em combate com Araújo. Um golpe na carótida, o que saía da voz de Marcílio, narrando, interrompendo nossa suposta concentração, na minha retina e na de Weynes Matos, estendida com a câmera os sentidos. Em um descampado tomado por casas e comércios, papeis passados ouvindo buzinas e sentindo odor sem agrado, subindo aos pontilhões. E lá Marcílio, conosco e seus tantos outros, em quentura na moleira, braços longos, calças compridas, pele e alma bronzeadas de ternura. Seu jeito de pastorear, de caminhar conosco.

Afetos – Rapaz solteiro, como se efinia, foi acompanhado pelos familiares em seus penúltimos dias, a partir da irmã Vilani. No decorrer da vida, acompanhou com carinho os seus mais próximos, de quem tanto gostava, como o irmão, e principalmente a mãe. Foi mencionando-a que se desculpou por não poder ir a Canudos, em 1997, muito agradecendo o convite que recebia. Mandava suas lembranças, desejando boa viagem à terra que afetivamente dividia com os amigos, rompendo fronteiras geográficas, fazendo um limiar sempre possível, na condição de narrador. Antes às agruras do dia a dia, demostrava alegria com a notícia do aposento, e mandava dizer pela minha mãe que as coisas haviam caminhado bem, agradecendo a torcida que tínhamos para o que o iria dar alguma tranquilidade. “Depois vou ajeitar uma galinha gorda pra vocês”, soltava a voz entre firmeza e riso.

E em uma lacuna de carnaval, um amigo que, pelo azar de ‘prego’do carro, dava a sorte, pelo menos, de poder encostar perto da casa de Marcílio, para ouvir: a culpa toda foi do Prudente de Morais, um portal para a prosa sem um começo e um final. E também Marcílio, na Igreja, em calçada, ao lado da irmã, da sobrinha, com velhos e sempre novos amigos. Com alguns deles fiz caminho, nas páginas da Revista Entrevista, do Curso de Comunicação da UFC, fotografado e abraçado pelo amigo e professor Ronaldo Salgado. Com muita felicidade, brindamos essas páginas, compartilhadas aos leitores.

Mas o que primeiro entra em minha memória, quando em mim percorrem tais lembranças, é a imagem do cachorro que, durante a entrevista, no hotel fazenda, aproximou-se do punhado de pessoas e escolheu sentar nos pés de Marcílio. E ali se aquietou, no prazer tranquilo de ser acarinhado pelo narrador, que descaroçava palavras entrecortadas pelo tempo.

E viva Marcílio! Que está com Deus, e esteja conosco.

Por
Danilo Patrício
Jornalista, doutorando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

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